Funcionários - ou como gastar dinheiro estupidamente #1

Tuesday, December 16, 2014

(Na onda da sátira "Funcionários" do livro "Quotidiano Delirante" do artista Miguelanxo Prado segue uma estória de pura ficção...)

«Era uma dia de semana como um outro qualquer, de um qualquer ano lá na repartição dos serviços da edilidade.

- Bom-dia... - disse o homem com voz arrastada ao chegar ao serviço pousando o jornal desportivo em cima da mesa.

- Bom-dia senhor engenheiro! - responde o rapaz franzindo o sobrolho - Quer dizer, já é é quase hora de almoço.

- É? - disse mirando o relógio - tens razão. Estive ali no café a trabalhar rapaz. Isto nem tudo se faz atrás de uma secretária entre quatro paredes - replicou.

- Agora que chegou... veio cá o vereador para tratar do tema da Mobilidade Urbana. Diz que ainda há orçamento para este ano e que temos de gastar a verba pois se não se gasta para o ano já se sabe que não podemos contar com o "ovo no cú da galinha", palavras dele.

- Isso é verdade rapaz, uma boa verdade. Aprende! Toda a gente sabe que se sobra orçamento então para o ano acaba a mama. Tiemos que gastar lo diñero! - disse sorrindo - Veio cá falar do quê? Mobilidade?

- Sim - esclareceu o rapaz pensado que o portunhol só ficava mal ao engenheiro.

- Ópá, tenho uma ideia genial para isso.

- A sério?

- Sim, sim... agora que anda aí a moda das bicicletas, eeh, as bicicletas é mobilidade não é?

- É, é! - confirmou o rapaz expectante.

- Isso... então pensei que podíamos fazer aí umas coisas boas para essa malta das duas rodas que agora andam praí todos excitados.

- Venha de lá essa ideia!

- Estás a ver aquele jardim lá em baixo perto da ribeira? - questionou o homem com entusiasmo na voz - Onde tem agora aquela esplanada, que até tem TV e costuma dar a bola? Gosto mesmo de lá ir, é agradável.

- Sim, até é perto de sua casa, não é? Costuma lá ir a pé?

- É mais ou menos perto, é um minutinho de carro. Não gosto de ir a pé pois há sempre carros no passeio e as calçadas estão em mau estado. 

- Está a falar a sério? - inquiriu o rapaz com ar reprovador - Mas aquilo não é complicado de estacionar?

- Há lá uns passeios a uns ciquenta metros que se estacionar assim meio em cima meio na estrada aquilo fica bem, e não incomoda ninguém. Há lá perto uma esquadra, mas se não estacionar nos lugares da deles então não chateiam.

O rapaz suspirou primeiro e engoliu em seco depois para não dizer nenhum impropério.

- Bom, mas e a ideia da mobilidade?

- Então no outro dia fui lá tomar café e ler o meu jornal, sabes, gosto de ir à esplanada pois apesar de haver ali um parque infantil tiveram a decência de meter na outra ponta do parque... assim os fedelhos não andam por ali a chatear, e os paizinhos que vêm ao jardim não abancam na esplanada pois tem de ir para o parque infantil acompanhar as crianças, hihihi, olha, não sei quem teve essa ideia mas é brilhante, ter o cafézito com esplanada e o parque infantil em zonas totalmente afastadas, assim não há cá misturas... bom, mas dizia-te... então não é que no outro dia fui lá e dois putos badamecos deixaram as suas bicicletas assim largadas no meio do caminho? É que quase não dáva para passar - e acabou de falar com ar de duradoura perplexidade.

- Hmmm, está bem, são miúdos, o jardim até é bom para a criançada andar de bicicleta...

- Certo, certo... mas cada coisa no seu lugar... daí que me lembrei que bom bom era meter ali uma daqueles estruturas para se estacionar as ditas, que achas? Grande ideia hã?

O rapaz pausou e pensou uns instantes.

- Honestamente? 

- Sim! Sim!

- Acho que não! Acho que era preferível gastar o orçamento em coisas realmente úteis e necessárias. Arranjar e nivelar os passeios. Colocar pilaretes onde possa haver estacionamento selvagem. Melhorar a sinalização que está deteriorada. Criar rampas onde há escadas para facilitar a deslocação de pessoas com necessidades, ou até para os carrinhos de bebés. Sei lá... ter semáforos com avisos sonoros para as pessoas com dificuldades visuais, ou até com temporizador para ajudar os peões nomeadamente os idosos. Criar zonas de acalmia de trânsito, com lombas e desníveis nas zonas de maior aceleração. Sei lá, tanta coisa que realmente poderia ser dinheiro bem gasto em termos da mobilidade urbana. Iniciar um troço de uma vasta ciclovia, e todos os anos ir fazendo um bocadinho. Isso de um suporte para bicicletas não me parece um bom investimento. Eu não metia aí o meu dinheiro.

- Poiiiiiis - arrastou o homem - o dinheiro não é teu mas é dos contribuintes, não te preocupes com isso. Olha que eu acho que é uma grande ideia. Acredita. Vais ver que metemos lá aquilo é vai encher de bicicletas. Tens visto muitos cegos a andar na rua? Não há. Não são malucos de arriscarem e serem atropelados. Deixa-te disso. Está decidido. Suporte para bicicletas para os fedelhos não me atrofiarem mais o meu caminho. É que assim depois já posso argumentar com os progenitores das crianças para irem lá estacionar as ditas. 

O rapaz já não estava com cabeça para argumentar, ele ali não mandava muito. Continuou o homem:

- Arranjar as calçadas e melhorar as condições para os idosos? E depois a minha santa Mãe ainda se arriscava a sair de casa sozinha e era um ai-jesus. Prefiro que ela fique sosseguadita em casa no sofá a ver televisão, lá está em segurança... ainda me aparecia na esplanada, já basta os almoços de família ao domingo.

O rapaz viu que na cabeça do homem não havia ponta de esperança. 

- E até te digo rapaz, isto bem feito, mas bem feito mesmo, é meter várias dessas estruturas espalhadas no parque, assim não há desculpas. Vamos lá estoirar, errrr, a aplicar esse orçamento. Mandamos meter dois, não três... isso... três suportes de bicicletas. Mas dos bons!  E um deles, o mais afastado de todos e longe de tudo, metemos uma estrutura de cobertura para proteger da chuva e do sol que é para ser o mais usado. Acho que é grande ideia.

- Olhe que acho que não.

- É grande ideia sim. Ainda metemos isto como comunicação positiva e obra feita no boletim do município, sempre fica bem e faz figura. Até tenho um amigo, err, um contacto... bom, um fornecedor cá da zona que faz isso barato. Rapaz, é BRI-LHAN-TE!
»

A estória é fição minha, mas os suportes são reais e existem no Parque Urbano de Miraflores, e nunca vi lá uma bicicleta que fosse... n-u-n-c-a!




Ver via Google Maps Street View

Adenda 1:
Hoje dia 20 de dezembro de 2014 na primeira visita à explanada após a escrita deste post eis que chego e está esta situação:



O "funcionário" que gasta assim o erário público deve ser daqueles que mete o escorredor da loiça na banheira, pois é onde faz sentido. Enfim...

Adenda 2:
Hoje dia 1 de maio de 2015, feriado do Dia do Trabalhador, vi finalmente a estrutura perto do parque infantil com algumas bicicletas.
Na minha parca e humilde opinão continua a fazer um mau serviço, pois leva a que as pessoas e crianças ali coloquem as suas binas que ficam longe dos olhares e sem qualquer segurança.
Eu levaria sempre a bicicleta para dentro do recinto para estar de olho nela, mas pronto, sou eu que se calhar sou picuínhas.



4 comments

  1. Qualquer semelhança com a realidade, é pura coincidência...

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  2. Lindo, estava a imaginar Lisboa e não estava a ver qual seria o parque mas assim que vi as fotos vi logo onde era e o post é hilariante... vou quase diariamente a esse parque e a bike (e a dos miudos) fica sempre encostada a algum lado, nunca nesses entorta-rodas.

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  3. Boa Tarde, tem algum contacto de email? Gostaria de lhe fazer uma pequena sugestão se possível. Muito obrigado pela atenção.

    Aproveito este pequeno comentário para lhe dizer que o blog está muito bem conseguido. Parabéns.

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    1. Francisco, o meu mail é nuro.m.carvalho(at)gmail.com

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